O Porquê dos nossos Sentimentos


Por que existem os nossos sentimentos? Nossas emoções? Por que somos seres racionais e emocionais e não apenas racionais?
A resposta a estas perguntas, embora poderá - inicialmente - soar estranha e aparentemente sem sentido ao leitor, me parece estar relacionada com um dos mais poderosos instintos inerentes ao ser humano: a sobrevivência de sua espécie.

O conceito de "sobrevivência", entretanto, deve ser mais amplo do que se supõe quando se refere a nós, seres humanos, pois comer, beber, dormir e procriar não bastam. É como se extrapolássemos estes quatro requisitos básicos para sobrevivermos. Precisamos de mais... E este mais está ligado ao nosso bem estar físico e mental, felicidade e satisfação.

Sentimentos e emoções são em grande número em nossas mentes; eles afetam nossos corpos, nosso comportamento, as nossas vidas. Não há espaço aqui para explicar um a um com base na sobrevivência de nossa espécie como animal. Darei exemplos de alguns. Importante realçar também o caráter "estatístico" deste artigo, no sentido em que estarei falando de características de populações. As características de um indivíduo pode representar uma tendência em toda uma população, uma maioria, onde as exceções não importam. Quando eu falar de algum sentimento ou emoção, o leitor deverá pensar em termos amplos, gerais. Por exemplo: se digo que o amor é o elo de ligação mais importante entre pais e filhos e que sem ele a raça humana já estaria extinta, excluo os poucos casos onde os filhos foram abandonados ao nascer ou quando criança.

A Teoria da Evolução de Darwin sempre fora mal explicada e mal vista por muita gente. No começo do século XX, aqui no Brasil, era proibido falar nela nas escolas; havia preconceito em todos os países mas entre os cientistas ela simplesmente só evoluiu desde a sua concepção no século XIX. Isto criou um abismo entre os conhecimentos da Ciência nesta área e tudo aquilo que as pessoas comuns pensam e imaginam sobre como os seres vivos se modificam, se adaptam, sobrevivem, etc. E tudo isto se relaciona apenas com os corpos desses seres; imagine quanta ignorância existe quando se entra na correspondência entre evolução e mente.

Os seres vivos mais complexos do planeta, aves e principalemnte mamíferos, possuem cérebros altamente complexos e adaptados para conseguirem sobreviver aos estímulos negativos, destrutivos do meio ambiente. Insetos, peixes e répteis nascem em um estágio de maturidade o suficiente para se locomoverem e explorarem o mundo exterior; fora isto, o número de filhotes é grande o bastante para nem todos serem devorados pelos predadores. A coisa é diferente com os mamíferos: poucos filhotes e frágeis, necessitando-se de uma longa jornada de aprendizagem sobre seu ambiente, para um dia enfrentarem sozinhos os perigos deste mesmo ambiente e procriarem. Aí que entram as emoções. Algumas são básicas e compartilhamos com seres menos complexos: o medo e a agressividade. O medo é importante pois é um sinal de alerta, de algum perigo no meio; quem sobreviveria se não tivesse medo de nada? É necessário a existência de agressividade porque nada pode ser só passivo; enfrentar algum perigo, uma ameaça, requer também respostas passando, às vezes, pela agressividade. Em especial nos seres humanos, a natureza foi "caprichosa" no aspecto emocional: sentimos alegria, tristeza, ódio, paixão, culpa, satisfação, amor, afeto, temos fé, esperança, etc.

Temos a capacidade de procurar sexo mesmo sem a intenção de procriar. Procuramos porque gostamos, porque faz bem, porque nos satisfaz. Chegamos ao ponto de nos deliciar com um prato só para nos satisfazer mesmo sem estar com fome, ou seja, sem a necessidade momentânea de sobrevivência; por puro prazer. Procuramos coisas como viajar, sair, encontrar alguém de quem gostamos, nos divertir, porque faz parte do nosso lazer, do nosso bem estar. A palavra "gostar" está sempre presente; os sentimentos estão sempre presentes.

Existe o trabalho... Ele deve ser entendido como uma atividade inerente ao ser humano, seja qual for o seu modo ou finalidade: do homem de duzentos mil anos atrás ao perseguir uma presa durante horas, ao homem de hoje em um escritório repleto de aparelhos eletrônicos a ajudá-lo em seu dia a dia, tudo é trabalho. Tudo o que for uma atividade a implicar em geração de bens ou realização de uma tarefa imprescindível à nossa sobrevivência, mesmo que indiretamente. É o caso, este último, das sociedades que se modernizaram e o fruto do trabalho passou a ser algo "simbólico", o dinheiro, onde através dele conseguimos o que precisamos. Existiria o trabalho para nós se não gostássemos? Se não gostássemos ou se não sentíssemos nada com os seus frutos? Não existe somente o ato de trabalhar; sentimentos e emoções, conquistas que nos levam a satisfações extremamente benéficas a nós estão em jogo.

Quero dizer que vivemos procurando atividades, conquistas, coisas que nos fazem bem, para a nossa felicidade e bem estar. Se ora não conseguimos temos outras chances, temos nosso amor próprio e continuamos a viver, a procurar. Temos fé, esperança, sonhamos.
E os sentimentos negativos, as emoções violentas e negativas? Veja, nenhum sistema adaptativo como o cérebro, que visa o comando de um corpo para se perpetuar junto a ele, irá responder somente de modo positivo, no sentido de sentimentos positivos, em um meio ambiente onde os estímulos exteriores são positivos e negativos também. Ninguém gostará de um inimigo!
Para se capturar um animal faz-se necessário uma boa dose de agressividade e nós utilizamos recursos muitas vezes cruéis onde, se fôssemos parar para pensar, não comeríamos sequer um pequeno peixe do mar! Pode-se imaginar o quanto as nossas sociedades cresceram e se desenvolveram às custas de muitas mortes ou exploração, onde nossos ancestrais utilizaram e muito da capacidade humana de destruição para com os inimigos. E destruir envolve muita coisa de negativo.

Este é o universo da mente. Interessante salientar o papel da consciência em todos esses processos. Por exemplo: temos consciência de que o sexo é bom; então o procuramos, como disse anteriormente, sem a intenção de procriar. E também procuramos de forma consciente para deixarmos descendentes... A consciência é que talvez nos leve a transpor àquilo que eu disse a respeito de comer, beber, dormir e procriar: seres conscientes buscam estas coisas de maneira "automática", intuitiva. Mas procuram também para usá-las como fonte de prazer e satisfação; procriar seria exceção mas o sexo em si não; e procuram outras, como em um nível mais alto de atividade sistêmica, como o lazer, atividades prazeirosas, etc., para se sentirem bem. O sexo sem interesse de gerar filhos é talvez o ponto mais alto nessa "escala".

A consciência, indo mais longe, precisa necessariamente de, no mínimo, dois suportes emocionais para se perpetuar; duas forças poderosíssimas: a fé e o amor próprio. Que espécie de seres conscientes conseguiria a perpetuação se não acreditassem em si mesmos? No seu trabalho, na sua luta diária? Ou, como na maioria dos habitantes do planeta, em algo divino para se apoiarem? Nem levantariam da cama! E que sistema poderia também sobreviver se não gostasse de si próprio? O que adianta um corpo forte em uma mente fraca? Talvez chegamos a um fato universal: qualquer ser consciente no cosmos terá este tipo de característica. Talvez não exista nada somente racional.

Este artigo pode dar a impressão de que refere à nossa civilização ocidental, consumista, desejosa de prazeres, poder e dinheiro; não é isso. Ele se refere àquilo que os seres humanos possuem em sua natureza íntima, de básico em suas mentes onde se criou todas as culturas e civilizações até hoje. Umas foram mais pacíficas que outras; algumas foram mais mercantilistas, enquanto outras se preocuparam com a tecnologia e produção industrial. Mas a sobrevivência do homem se deu até hoje com a combinação de um lado racional com outro emocional. E sobrevivência para o ser humano engloba, além de sua natureza racional, tudo o que proporciona satisfação, felicidade, prazer, conquistas, etc. "Estados" correlacionados com nossas emoções e sentimentos. Retire tudo isto dos humanos e verá a nossa espécie desaparecer.

O meu artigo em uma edição anterior desta revista, “O Porquê dos nossos Sentimentos - I ” representou uma sugestão sobre o papel dos sentimentos e emoções na Teoria da Evolução de Darwin. É um texto de Neurociência onde eu sugiro a razão pela qual sentimentos e emoções existem em nossos cérebros.

Dúvidas surgiram em vários leitores e por isto senti a necessidade de desenvolver um pouco o assunto.

Para começar, temos que entender que existe uma ordem aparente na evolução animal, uma escala crescente em complexidade nos seres vivos do nosso planeta. De seres unicelulares povoando diversos hábitats terrestres, até nós humanos, passamos pelos insetos, répteis, peixes, aves e todos os mamíferos, estes últimos menos complexos que nós. A diferença entre nós e os outros mamíferos se refere àquilo que é o sistema mais complexo conhecido: o nosso cérebro. Em termos somáticos, e até certo ponto no sistema nervoso, somos muito parecidos com eles, do ponto de vista da morfologia, da genética e da bioquímica. É importante lembrar que esta escala não representa necessariamente uma ordem crescente em complexidade na história evolutiva de cada grupo em relação aos outros. Por exemplo, uma ave é mais complexa que um inseto mas este pode ser mais novo como espécie. Pode até ocorrer uma diminuição da complexidade ao longo da evolução de uma espécie. O neurofisiologista Rodolfo Llinás, em seu notável livro "I of the Vortex", relata a existência de um invertebrado marítimo que, ao passar da forma larval, que se move livremente na água, para uma forma afixada permanente, como uma ostra, digere o seu próprio cérebro, provavelmente por não precisar mais de tanta complexidade.

Atualmente é aceito sem dúvidas que a origem das espécies novas está baseada no fato de que os seres evoluem, ou seja, se modificam, se adaptam à mudanças no ambiente, etc. Assim, o chamado "modelo padrão" da biologia se consolidou através do casamento entre as descobertas da biologia molecular, da genética e da teoria da evolução. Pode ser argumentado, portanto, que isso se aplica a todos os aspectos da nossa biologia, inclusiveas bases para os nossos mais complexos comportamentos e emoções.

A evolução biológica se manifesta através de mudanças permanentes (codificadas genéticamente) na forma e função das células, tecidos e órgãos dos seres vivos, Entretanto, o que interessa para nós aqui, é que desde os tempos de Darwin, mas especialmente como resultado do trabalho pioneiro de etólogos animais na década dos 30s, tais como Konrad Lorenz, sabemos que o comportamento dos animais também está sujeito a pressões seletivas e adaptativas. O comportamento "surgiu" na Terra há muito tempo. Por exemplo, um ser unicelular, como uma ameba reage se afastando de um estímulo negativo ou se aproximando de um estímulo positivo para sobreviver. Comportamentos simples, como tropismos deste tipo, existem provavelmente há centenas de milhões de anos, e podem ser encontrados até mesmo em organismos que não têm sistemas nervosos, como plantas. Entretanto, a seleção natural pressionou pelo surgimento de comportamentos cada vez mais complexos e avançados, levando à evolução dos órgãos sensoriais, músculos e redes neurais especializadas. Para o comportamento aplica-se a mesma coisa que para outros traços dos organismos: quanto maior for a gama de comportamentos exibidos por um determinado organismo reagir, sobreviver, maior será a sua chance de se adaptar adequadamente ao ambiente mutante. Diversidade é a palavra-chave aqui. Muitos autores sugerem, portanto, que a complexidade cerebral é essenciamente relacionada à complexidade das estratégias comportamentais desenvolvidas para a sobrevivência da espécie e os rigores da competição. Por isso não é difícil de imaginar que, como os organismo precisam adquirir e processar uma maior quantidade de informações a respeito do meio ambiente, isso exige um sistema nervoso mais complexo.

Eventualmente (e esse era um dos maiores medos de Darwin, como humanista e religioso), todas as características do cérebro humano, mesmo aquelas consideradas "superiores" e complexas, como linguagem, pensamento, logica, sentimentos, etc., podem ser inteiramente explicadas pelos efeitos da seleção natural na evolução. Alguns autores, como Richard Dawkins, chegam ao extremo se sugerir que a característica essencial de todos as formas vivas é simplesmente preservar a sobrevivência dos genes (veja o seu livro "O Gene Egoísta").

No meu primeiro artigo citei o exemplo do "elo de ligação" que aparece entre pais e filhos, através de sentimentos como afeto, amor, etc., sem os quais ninguém sobreviveria neste planeta logo após o nascimento. Entretanto, em muitas situações, o instinto de proteger os filhores entra em conflito com os instintos de sobrevivência. Primeiro, um genitor precisa, entre outras coisas, saber quem são seus filhos, saber o que fazer para protegê-los e a si próprios. Neste ponto o cérebro, com seu lado racional, passa a ser tão importante quanto o lado emocional. Além disso: reações como a agressividade contra predadores, e comportamentos e sentimentos de defesa em relação ao bem estar do grupo social como um todo, podem tomar uma precedência em relação aos próprios cuidados com a prole, devido à necessidade de perpetuar a espécie. Podemos observar isto em primatas não humanos, tais como chimpanzés, em que o infanticídio é muito comum e é relacionado às bases instintivas desses tipos de defesas.

Isso não acontece com os seres humanos, entretanto. Devido à evolução cultural, a base emocional e instintiva pode ser inteiramente modificada através da razão. Por exemplo, uma mãe pode preferir sacrificar a própria vida para salvar a do seu bebê. Ou a sobrevivência do grupo social pode ser ameaçada com base em razões puramente racionais (como na guerra). "Saber" é racional; "sentir" é emocional; e aí estão os dois pilares cerebrais de que falei no primeiro artigo: somos seres racionais e emocionais e não só racionais. Essas duas esferas estão unificadas e não podem ser separadas, como foi explicado de forma muito bonita pelo neurologista Antonio Damasio, em seu livro "O Erro de Descartes". Citando a falta completa de emoções em personalidades sociopáticas, e as alterações de personalidade em pacientes lesados em certas áreas frontais do cérebro, tal como no caso histório de Phineas Gage, Damasio explica que o erro de René Descartes foi supor que há uma separação entre o racional e o irracional (emoções, sentimentos), e que ser supremamente racional seria a melhor coisa para a humanidade. Não é verdade: sem emoção, a racionalidade perde um componente importante e se torna patológica!

Em conclusão, podemos dizer que a natureza encontrou um caminho para resolver o problema dos seres vivos que possuem uma prole dependente dos pais durante o período de amadurecimento. As estratégias comportamentais que surgiram após milhões de anos da evolução dos hominídeos e de seleção sexual envolvem uma complexa mistura de razão e emoções. Esta provavelmente é a base da nossa singularidade entre todas as espécies .

Sobre o Autor
Argos de Arruda Pinto
Físico
Santa Rita do Passa Quatro-SP

Imagen: National Cancer Institute

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fico feliz que comente e venha me visitar!
Um grande Abraço e Volte sempre!
Obrigada.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Translator