Sentirmo-nos bem com a idade que temos – A percepção subjectiva do envelhecimento e o sentimento de satisfação



São poucas as coisas que escapam às garras vorazes da moda e dos seus rituais. Se um especialista em marketing quisesse lançar a moda “ser idoso é bom” deparar-se-ia com inúmeras dificuldades. Não é fácil construir uma moda, quando o envelhecimento tem um potencial de atracção tão pouco visível e a moda, como todos os fenómenos que vivem de um glamur ao primeiro relance, precisa de um primeiro impacto favorável, senão mesmo cativante. Está na moda ser-se jovem, ter-se um corpo fantástico, ser-se um profissional brilhante e, nos últimos tempos, ter-se filhos.
Não devemos estar com rodeios. Ser forçado ao envelhecimento é ser-se encurralado num beco sem saída, do qual não se pode fugir sem um exercício intenso e profundo de criatividade. Apregoar a beleza do envelhecimento, é, num certo sentido, tapar o sol com a peneira. É possível que especialistas em Marketing possam, não sem esforço, como dizia anteriormente, lançar a moda “ser idoso é bom”, mas a experiência subjectiva de um tempo que se escoa, de uma vida que já foi em parte vivida e que não pode ser re-vivida é penosa e exige um esforço enorme por parte do psiquismo para que se alcance um qualquer ajuste. Lentamente, o trabalho da psicologia do desenvolvimento tem vindo a recolher os seus frutos e é, hoje, já possível, descortinar uma linha ou até mesmo uma corrente que remando contra a maré, mostra que o envelhecimento é uma fase da vida como qualquer outra, nem pior, nem melhor, apenas diferente. Contudo, contrariamente à adolescência ou até mesmo à idade média, a idade avançada traz consigo um pessimismo difícil de contrariar porque coloca na linha da frente a relação do sujeito com a angustia de morte. As questões relativas à angustia de morte estão presentes em todos nós, desde sempre, mas a proximidade probabilistica da morte real, coloca o sexagenário e o septuagenário no centro de um furacão onde voam os mais intensos receios de auto destruição e destruição do outro. Querer lidar com a idade avançada sem lidar com a expectativa de morte, nas suas mais variadas formas é, na nossa opinião, estar na posição do gato escondido com o rabo de fora. Estamos habituados, num certo sentido, a conviver com a imagem adocicada das avózinhas profundamente altruístas e hiper-disponiveis para os netos e com a ideia estereotipada do ancião sábio que partilha com os mais novos os vastos e profundos conhecimentos sobre a vida; mas a realidade mostra-nos que são poucas as pessoas que conseguem alcançar essa docilidade e disponibilidade. A maior parte das pessoas envelhece com uma dose elevada de amargura e, mesmo quando a conseguem negar ou disfarçar, ela mostra a cara numa comunicação queixumenta, hipocondríaca e manipuladora.
Evitar a amargura, a zanga e o ressentimento na idade avançada implica a existência de uma capacidade de estar em contacto consigo próprio muito desenvolvida e uma elaboração bem conseguida das mais aterrorizantes angustias, assim como a manutenção da eficácia dessa mesma capacidade de elaboração e matabolização das emoções. Esta tarefa é tão difícil que alguns autores defendem inclusivamente que perante as dificuldades emocionais colocadas pelo envelhecimento, a mente menos bem preparada, pode sucumbir sobre a forma demencial. Diz a autora (GoldFarb): “O fracasso do processo de elaboração da finitude, o desinvestimento dos vínculos, e a fragilidade ante as vicissitudes do processo de envelhecimento, podem provocar estados depressivos , dos quais é possivel de fugir por meio de um esquecimento radical e violento, ou seja, pelo processo demencial” Não partilhamos, pelo menos de imediato, de uma posição tão radical, mas não temos a menor dúvida de que ser capaz de lidar com a expectativa da morte é a alavanca de arquimedes, para o sentimento subjectivo de satisfação com a idade que se tem.
Sentir-se bem com a idade que se tem é uma tarefa simultaneamente atemporal e muito bem circunscrita no tempo. Atemporal porque é fundamental em qualquer fase da vida e bem circunscrita no tempo porque é determinante a relação da pessoa com esse momento particular e especifico que vive. A noção e a consciência da finitude desorganiza uma serie de construções que a pessoa foi fazendo ao longo da idade média, construções essas que assentavam muitas vezes na ideia inconsciente de imortalidade. Confrontado com o aumento progressivo das suas dificuldades e empurrado contra as malhas estreitas da finitude, o sexagenário e o septuagenário, olha para o mundo e para si próprio com apreensão e por vezes desespero. Sair deste buraco estreito torna-se mais fácil quando existem pontos de apoio e rampas de lançamento. O apoio psicológico especializado, a par do apoio social e familiar são as estruturas que, se devidamente disponibilizas, funcionam como eixos de agregação de um self fragilizado e em esforço.
Sentir-se bem com a idade que se tem é essencial para um envelhecer saudável. Quando a pessoa atingiu uma idade avançada e sempre arrastou consigo um mal-estar relativo à vivência subjectiva da sua idade - quando era criança não gostava ou não sabia ser criança, quando era adolescente não gostava de o ser e ansiava ser novamente criança ou rapidamente adulto, quando adulto queria regressar à infância ou à liberdade fantasiada da adolescência – há um agravamento muito substancial desse mal-estar. Ser-se capaz de conviver bem com a idade que se tem é uma tarefa que se inicia na mais tenra infância, mas que ganha contornos particularmente importantes quando se chega a idades avançadas. Viver-se bem quando se toma consciência aguda da finitude e da degradação progressiva do corpo é muito difícil; as reacções mais habituais são: a dependência, o desespero ou a negação. Mas o caminho do desespero e da negação é o caminho de muitos problemas e complicações e o caminho da dependência leva a uma quase morte antecipada. Como envelhecer sem desesperar, sem negar as nossas limitações e dificuldades e simultaneamente sem nos tornarmos excessivamente dependentes? Ao longo desta apresentação iremos tentar expor uma resposta possível para esta pergunta. Não é a única resposta possível, é apenas uma e serve para pensarmos um caminho e não para definirmos um caminho.
Consideramos, seguindo a linha de pensamento psicanalitica iniciada por Wilfred Bion que o sujeito humano durante toda a sua vida é permanentemente colocado perante a decisão primordial de tolerar ou evitar a dor psíquica. Esta decisão pode ter repercussões complicadas ao nível do desenvolvimento e correcto funcionamento do aparelho para pensar pensamentos. De acordo com o autor anteriormente referido, quando a pessoa não é capaz de tolerar a frustração o tempo suficiente para entrar em contacto com o não-objecto vê-se perante a contingência de evacuar, via identificação projectiva, a emoção não tolerada. Esta evacuação precipitada é sentida como prazer uma vez que livra a mente do contacto com a emoção dificilmente suportada ou seja a frustração. Apesar do alivio imediato que proporciona a evacuação da emoção penosa não resolve o problema do contacto com a frustração a não ser no seu nível mais imediato, porque não se organiza nenhum tipo de alteração, nem interna, nem externa, que permita modificar as causas que estão subjacentes ao fenómeno que gera essa mesma frustração. Pelo contrario, ser-se capaz de tolerar a frustração um tempo mínimo, empurra a mente no sentido da procura de uma solução eficaz para lidar com aquela emoção ou problema. Bion considera que é sobre a pressão dos pensamentos que preexistem e do contacto com a frustração que se origina o aparelho para pensar os pensamentos e que a existência deste aparelho faz com que a pessoa tenha à sua disposição uma ferramenta incrivelmente útil para elaborar as emoções e dessa forma aprender com a experiência. De acordo com os princípios propostos por esta teoria do funcionamento da mente, torna-se claro, que o aprender com a experiência é a “grande vitória” do homem sobre a vida. Quero com isto dizer que em qualquer fase da vida, aquilo que é primordial é a capacidade que o sujeito tem para aprender com e na experiência. Não se trata, como noutras correntes, em destacar a satisfação ou a frustração nesta ou naquela área da vida como o grande indicador da qualidade de vida, mas em pensar-se a mente humana como tendo uma estrutura profundamente dinâmica cuja a matriz de base está permanentemente em alteração, mas que mesmo assim mantém a sua competência enquanto instrumento que viabiliza a aprendizagem com a experiência. Se nos centrarmos nesta linha de pensamento conseguimos olhar para as questões relacionadas com o envelhecimento e pensá-las de acordo com toda a sua especificidade e simultaneamente retirá-las de um campo marginal. Queremos com isto dizer, que pensar as questões do envelhecimento é situá-las num eixo temporal e simultaneamente assumi-las como intemporais. O cruzamento destes dois eixos pode parecer numa primeira leitura impossível e assentar num julgamento paradoxal e por isso irracional, mas uma análise mais atenta e cuidada permite-nos perceber que é precisamente no ponto em que se cruzam estes dois eixos que o envelhecimento consegue ser apreendido com um maior grau de profundidade e realidade.
Aprender com a experiência é uma actividade profundamente dinâmica e criativa tão importante para o bebé recém-nascido como para a pessoa de idade avançada. Deixar de se abrir à experiência e tornar-se emocionalmente indiferente e insensível à experiência interna e externa é abrir a porta para o abismo escuro da alienação. Pensamos que o psiquismo não avança nem se modifica por saltos abruptos, mas sim, de forma progressiva e contínua, neste sentido, pensamos que a capacidade para aprender com a experiência que uma pessoa de idade avançada apresenta num dado momento está intimamente correlacionada com a utilização que fez dessa mesma capacidade ao longo de toda a sua vida. Uma pessoa que tenha, ao longo da sua vida, aprendido a desenvolver esta capacidade e a tenha utilizado de forma ágil e permanente estará em melhores condições para o continuar a fazer numa idade mais avançada. Contudo, se durante a sua vida foi revelando dificuldades em desenvolver a capacidade para aprender com a experiência, quando é confrontado com as exigências inerentes ao envelhecimento, as dificuldades podem tornar-se ainda mais agudas e quase intransponíveis. Uma das imposições do envelhecimento é uma redução mais ao menos acentuada da intensidade das percepções, há uma diminuição da acuidade visual e auditiva, um aumento do limiar de tolerância à dor, uma perda de sensibilidade táctil e um aumento das dificuldades de locomoção. Este conjunto de perdas origina uma redução, que em certas situações pode ser muito significativa, de inputssensoriais externos. Os inputs sensoriais externos são a nossa fonte primária de estimulação e dependemos dela em grande parte para alimentar a nossa mente, a nossa vida interior. Quando se dá uma redução da intensidade, frequência ou variedade destes inputs, a pessoa fica numa situação particularmente delicada, na medida em que fica mais sujeita, por um lado, a “desligar-se” do meio-externo que deixa de lhe parecer tão interessante e estimulante e, de outro lado, fica particularmente sujeita à estimulação interna, seja ela sob a forma de percepções do interior do seu corpo, seja sobre a forma de pensamentos, memórias e emoções.
Neste contexto é evidente que a existência de uma vida interior rica, cheia de memórias, fantasias, curiosidades e interesses, irá alimentar a mente e a redução dos inputs sensoriais não será vivido como uma verdadeira perca, mas como a possibilidade de se recolher mais sobre si próprio e contemplar a sua vida, é uma altura em que o desejo de escrever as suas memórias poderá ser mais intenso, ou poderá dedicar-se a tarefas mais solitárias, igualmente gratificantes, como seja, ler, ouvir musica, ir a espectáculos, passear, etc. Dado que são actividades que poderá realizar ao seu próprio ritmo. Mas pelo contrário, se a vida interior for pobre ou cheia de conflitos e angustias, essa será uma altura em que a redução dos inputs sensoriais será vivido como uma perda irreparável e a pessoa tenderá a aferroar às impressões sensoriais que ainda continuam fortes e que ganharam um interesse acrescido porque banhadas pela angústia depressiva ou até de eventualmente de morte. Nestas situações vemos desenvolverem-se os quadros “hipocondríacos” em que o interior do corpo e as suas alterações são vividas com aflição, na expectativa, aterrorizante e quase desejante, de que algo de trágico poderá surgir e arrastá-los para a morte certa. Ou observamos o agravamento dos quadros obsessivo-compulsivos que compelem a pessoa a retrair-se cada vez mais, em movimentos circulares e redundantes, com preocupações excessivas com a limpeza ou o seu oposto, desinteresse constrangedor pelo acumulo de lixo, ou ainda, preocupações alimentares e ruminações intelectuais sobre as grandes questões do universo. A luta contra a solidão é em primeiro lugar uma luta interna, entre o desejo de estar acompanhado e o sentimento de insatisfação quando acompanhado. O afecto depressivo faz com que a pessoa se desinteresse ainda mais dos outros, a não ser, que entre ela e o outro se dê uma empatia extrema. Empatia essa que, na maioria dos casos, é a afirmação de um solipsismo e a necessidade de ter um ouvinte ou uma plateia que possam conter e elaborar a torrente de emoções e convicções que lhe fazem companhia nas “intermináveis” horas em que fica acordado.
Pensamos que uma grande parte destas situações clinicamente identificáveis poderão ser amenizadas através de um trabalho psicoterapeutico adequado conjuntamente com intensa estimulação social e suporte familiar de qualidade. Consideramos que o desenvolvimento da Psicogerontologia Clinica numa vertente psicodinâmica é indispensável como forma complementar ao extraordinário trabalho desenvolvido pela Psicogerontologia Desenvolvimental. A Psicogerontologia na perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento tem trilhado um caminho muito importante nas áreas em que a saúde mental prevalece e fundamentalmente ao nível da prevenção e sustentação de um envelhecimento com qualidade. Pensamos que o estudo da Psicopatologia na idade avançada está ainda no seu inicio, tendo havido um interesse particular pela Depressão e pelas patologias cerebrais, nomeadamente deficits de memória, Alzeimer e outras perturbações demenciais. Contudo, consideramos que ainda está por fazer um profundo trabalho de investigação. Esperamos que este nosso texto seja um contribuição, mesmo que muito pequena, para o aprofundar do pensamento daquilo a chamámos a Psicogerontologia Clinica.




Bibliografia
  • Barros de Oliveira, José H. Psicologia do Envelhecimento e do Idoso. Livpsi
  • Bion, Wilfred R. (1967) Second Thoughts. Heinemann
  • Bion, Wilfred R. Attention and Interpretation. Tavistock
  • Bion, Wilfred R. Elements of Psycho-Analysis. Heinemann
  • Bion, Wilfred R. Learnig from Experience. Heinemann
  • Bion, Wilfred R. Transformation. Heinemann
  • Charazac, Pierre. Introdução aos Cuidados Gerontopsiquiátricos. Climepsi
  • Fernandes, Purificação. A Depressão no Idoso. Quarteto
  • Fonseca, António Manuel. Desenvolvimento Humano e Envelhecimento. Climepsi
  • Fontaine, Roger. Psicologia do Envelhecimento. Climepsi
  • Goldfarb, Delia. (2004) Do tempo da Memória ao Esquecimento da História: Um estudo Psicanalitico das Demências. Tese de Doutoramento. São Paulo
  • Messina, Monica. Dimensões do envelhecer na contemporaidade. Trabalho apresentado no 2º encontro temático em Gerontologia em Agosto de 2002. Rio de Janeiro
  • Ortiz, Luis Agüera; Carrasco, Manuel Martín; Ballesteros, Jorge Cervilla. (Org) (2002) Psiquiatría Geriátrica. Barcelona: Masson
  • Spar, James E., La Rue, Asenath. Guia de Psiquiatria Geriátrica. Climepsi
Texto de Ana Almeida
Psicóloga Clinica
Psicoterapeuta (Psicoterapia Psicanalítica)
Mestre em Psicologia Clinica e Psicopatologia
Membro da SPP e da APP
Directora Clínica da PsiCronos

2 comentários:

  1. Hoje estou passando apenas para lhe fazer um convite.
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Um grande Abraço e Volte sempre!
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