SOBRE A BONIFICAÇÃO
Rubem Alves
Meu pai, quando tinha 40 anos, dizia que até os 60 a vida é um direito.
Mas depois dos 60 a vida é uma bonificação, uma gorgeta.
Mas quando os 60 chegaram ele mudou de idéia...
Já estou vivendo de gorgetas. Completei 71 anos e estou velho.
Nessa idade os pensamentos são outros.
Os pensamentos que pensamos pelas manhãs não são os mesmos que pensamos quando o sol se põe.
A velhice nos faz pensar pensamentos diferentes.
No crepúsculo tomamos consciência da passagem do tempo.
O tempo escorre pelo meio dos nossos dedos cada vez mais rápido.
"Tempus Fugit"...
Isso nos faz agudamente conscientes do encanto de cada momento:
lindas bolhas de sabão, efêmeras...
Cada momento é um fruto maduro que temos de comer no agora porque no depois ele estará podre.
"Carpe Diem!"
Assim, tenho estado pensando nas bolhas que quero soprar, nos frutos que quero comer...
Meu primeiro desejo é cometer um assassinato.
Quero matar um Rubem que mora dentro de mim e que não me deixa descansar.
Torturador.
Não me deixa vagabundear.
Basta que eu me deite na rede para que ele me diga com voz severa:
"Há muitos deveres à sua espera!"
O pior é que eu levanto.
Gostaria de poder recitar com convicção um poema do Fernando Pessoa que começa mais ou menos assim:
"Ah, a delícia de não cumprir um dever..."
Para isso seria preciso que o Rubem torturador, guardador dos deveres havidos e por haver, fosse morto.
Como eu gostaria de me entregar às delícias da preguiça com uma consciência tranqüila.
Acho que na minha idade já conquistei esse direito.
O poeta inglês William Blake tem um aforismo que diz:
"No tempo da semeadura, aprender. No tempo da colheita, ensinar. No tempo do inverno, gozar"...
É isso que quero: gozar!
Quero que o próximo ano seja, para mim, um ano de vagabundagem.
Morte ao Rubem torturador!
Esse Rubem torturador, que na psicanálise tem o nome de Super-Ego, por vezes se vale de emissários.
Seus emissários não são as pessoas que não gostam de mim.
Não perco tempo dando ouvidos a quem não gosta de mim.
Seus emissários são precisamente as pessoas que gostam de mim.
A esses eu ouço.
E, por causa do seu amor por mim, eles me pedem:
faça isso, faça aquilo, gostamos tanto de você, não nos decepcione.
E não adianta eu dizer um "não" manso.
Eles não acreditam.
Meu corpo diz: "DIGA NÃO!"
Mas, porque eles são amigos eu digo sim.
Faço o que não quero fazer.
Quando isso acontece lembro-me dos versos de Walt Whitman:
"Quem anda duzentas jardas sem vontade anda seguindo o próprio funeral vestindo a própria mortalha..."
Assim quero no próximo ano aprender a dizer "NÃO" aos que gostam de mim, para que eu possa gostar de mim.
Não vou comprar um apartamento na praia.
Dá muito trabalho.
E raramente se vai lá.
Não vou comprar um BMW.
Meu carro modesto faz tudo aquilo de que necessito.
Que é que eu poderia fazer com um BMW que não faço com o meu?
As duas únicas coisas seriam voar a 160, que nunca faço, e mostrar para os outros, o que acho bobo.
Na verdade, não quero comprar nada, a não ser alguns CDs e alguns livros.
Viajar pode ser bom mas pode ser canseira.
Mas gostaria de viajar pela Patagônia, fora de grupos de excursão.
O terrível de grupos de excursão é que a gente fica obrigado a ouvir as piadas dos alegrinhos o tempo todo.
Prá dizer a verdade, contento-me com o meu pedaço de terra dentro da cratera do vulcão, Pocinhos do Rio Verde.
Conselho de Nietzsche para permanecermos jovens:
"Viva perigosamente. Construa a sua casa ao pé do Vesúvio."
Fui mais radical.
Construí minha casinha dentro da cratera do vulcão.
De vez em quando entrego-me à fantasia de que ele, repentinamente, depois de um sono de 500.000.000 de anos, vai acordar.
Que maneira fantástica de morrer!
Por enquanto lá tudo é manso: as arvores, os riachos, os pássaros, as borboletas, as mariposas ( fantásticas!).
Pus lá uma placa com um poema de Alberto Caeiro:
"Sejamos simples e calmos como as árvores e os regatos, e Deus amar-nos-á, fazendo de nós belos como as árvores e os regatos e dar-nos-á um rio aonde ir ter quando acabemos".
E vou escrever.
Escrever é minha maneira de ser.
Escrever me dá alegria.
Escrever nasce da minha alegria ( mesmo quando estou triste ).
Escrevo para derrotar a tristeza.
É só começar a escrever que coisas felizes comecem a dançar na minha imaginação.
É uma alegria solitária, só minha.
Mas logo a solidão se transforma em comunhão.
O riso salta do papel do livro e faz cócegas nos leitores.
E eles riem o meu riso.
Vou escrever as "Memórias da minha Vida":
por prazer e para os meus filhos e amigos.
Eles têm curiosidade sobre o meu passado e eu também...
Isso tudo, é claro, se minha bonificação não se esgotar...
Publicado no Correio Popular 26/12/2004
Rubem Alves
http://www.rubemalves.com.br
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